A Chanceler alemã, Angela Merkel, e o Secretário-Geral das Nações Unidas, António Guterres, na abertura do 14.º Fórum da Governação da Internet (XIV IGF), em Berlim, em 26 de novembro de 2019. | Fotografia: © Bundesregierung/Steins, 2019
De que falamos quando falamos de Internet Governance? — Breve introdução à problemática da sua definição
Por Carlos Fulgêncio
Junho de 2020
Artigo elaborado no âmbito da iniciativa nacional do curso Shaping the Internet da ISOC 1st Global Training Program.
Termo de responsabilidade: os pontos de vista expressos nesta publicação são da inteira responsabilidade do autor e podem ou não refletir as posições oficiais da Internet Society™ ou do seu Capítulo em Portugal.
“It is clear for me that we live in one world. But it is not entirely clear that we will live only with one Net.
It is a very emotional moment, when 30 years ago, we have seen the fall of the Berlin wall. And so it is for me an enormous frustration to know that today, not only we are still building physical walls to separate people, but that there is also a tendency to create some virtual walls in the internet, also to separate people.
And the only way to avoid it is if we are able to have one vision. And one vision and one world. I hope to be able to have also one internet.”
António Guterres, Secretário-Geral das Nações Unidas
Remarks to Internet Governance Forum (XIV IGF), Berlim, 26 nov. 2019
Apresentação
A presente publicação aborda a problemática da definição do conceito de Internet Governance. Não pretende ser exaustiva, ao invés um repositório reflexivo construído a partir de estudos anteriores, percorrendo as fontes e as etapas de referência propostas no curso da ISOC, complementadas com incursões em bibliografia conexa, de forma a disponibilizar uma síntese atualizada e fácil de consultar em ambiente web, acessível a todos os interessados no tema.
Governança[i] é a forma de governar, o modo como se administra ou dirige algo. A “Governança da Internet” é um conceito com múltiplos significados e distintas taxonomias em função da natureza da própria Internet.
A Internet é uma infraestrutura tecnológica global — assente sobre um conjunto de protocolos eletrónicos de comunicação —, edificada como uma rede de redes, interligando milhares de milhões de computadores e os respetivos utilizadores, através de distintos serviços e aplicações, servindo diferentes tipos de agentes e múltiplos propósitos. A Internet é simultaneamente universal e descentralizada, unitária e segmentada. Daí que a sua forma de “governo” seja objeto de distintas interpretações.
Sobre as definições de “Governança da Internet”
As diferenças começam no significado dado a cada um dos dois termos do conceito. Desde logo governança pode conter distintos entendimentos em língua portuguesa (vide nota 1), porém a dissonância maior surgiu precisamente a nível internacional, nomeadamente na Cimeira Mundial sobre a Sociedade da Informação (WSIS) das Nações Unidas, que se realizou em duas fases — em Genebra, em 2003 e, depois, em Tunes, em 2005.[ii]
Imagem: © ISOC OnlineCourses, 2020
Uma razão para a controvérsia foi o equívoco inicial por parte de alguns agentes governamentais que a palavra governança implicaria o envolvimento dos governos. Uma das consequências desta abordagem foi a convicção que as questões relacionadas com a “Governança da Internet” deveriam ser tratadas a nível intergovernamental com a participação limitada de outros atores, designadamente os não-estatais.[iii]
Por seu lado, interpretações restritas limitam o significado de Internet apenas à “rede”, não abrangendo sequer o termo “revolução digital”, durante a qual a computação e as tecnologias de comunicação trouxeram transformações significativas. Habitualmente os conceitos de “Sociedade da Informação” (SI) e de “Tecnologias da Informação e Comunicação” (TIC”) são apresentados como sendo mais abrangentes, apesar de se estenderem a áreas para além da Internet propriamente dita. Neste trilho poderíamos nos deparar com conceitos tão díspares como “Governação da Sociedade da Informação”, “Governo das TIC” ou outras combinações… porém é de “Governança da Internet” que estamos a falar.
Um dos argumentos mais convincentes para o uso do termo Internet é a crescente utilização do TCP/IP como principal norma técnica, i.e., como o principal protocolo (na prática é um conjunto de protocolos…) para a transmissão de dados nas comunicações eletrónicas.
As definições e os conceitos são essenciais em políticas públicas. A forma como uma questão política é definida impacta a forma como é trabalhada em termos jurídicos e posteriormente implementada. Ab initio as principais diferenças na interpretação de “Governança da Internet” podem ser agrupadas em duas categorias. A saber: diferenças linguísticas e diferenças de âmbito.
1. Diferenças linguísticas
Quem tenha participado em reuniões internacionais onde não se utilizem línguas de trabalho (como o Inglês…) e se faça questão em utilizar os idiomas oficiais dos participantes — quer a nível multilateral geral quer, por exemplo, a nível da União Europeia —, como são o caso das cimeiras de alto nível, provavelmente já se deparou com o chamado “atraso da tradução”. Um exemplo frequente é quando um orador conta uma anedota, em seguida avança para o ponto seguinte e, de repente, descobre-se alguém na sala a rir com a piada contada instantes antes…
Para além do “atraso” necessário para o intérprete fazer a tradução instantânea, uma das maiores dificuldades para a definição de conceitos no quadro das negociações internacionais reside precisamente na semântica, i.e., no significado e relações de sentido que as palavras podem adquirir em cada idioma e, inclusive, nas variações que podem existir dentro do mesmo idioma.
De um modo simples, as palavras podem soar de forma parecida em diferentes idiomas, porém ser compreendidas de forma distinta e, sobretudo, ter diferentes significados. Atente-se diretamente no termo “governança”, adaptado a partir do original Inglês governance. Em Francês (de França, FR/FR) utilizam-se termos como gestion des affaires publiques, efficacité de l’administration, qualité de l’administration e mode de gouvernement para designar as funções de governo ou os assuntos públicos. Em Espanhol (de Espanha, ES/SP), governance é habitualmente traduzida como governanza para a diferenciar de gobierno, que, por sua vez, se refere às funções executivas ou governamentais. Em Português (de Portugal, PT/PT) é seguido semelhante padrão, utilizando termos como gestão pública ou administração pública para referir as funções de governo ou do setor público.
Desta forma — e limitando-nos apenas a observar três dos idiomas oficiais da Europa Ocidental —, reparamos que há uma discrepância entre a principal perceção anglo-saxónia do termo governance e a forma como é compreendido e utilizado em França, Espanha e Portugal. Semelhantes analogias são válidas para outros idiomas.
Estas considerações linguísticas ajudam a explicar porque várias delegações oficiais presentes na WSIS, em 2003 e em 2005, associaram a utilização do conceito “Governança da Internet” diretamente ao “setor público”, centrando as suas deliberações, pelo menos inicialmente, na necessidade da intervenção governamental.[iv]
2. Diferenças de âmbito
As definições de “Governança da Internet” podem conter variações, porém, no essencial, coincidem em dois elementos: a infraestrutura tecnológica e as questões de políticas públicas.
Efetivamente, o funcionamento da infraestrutura tecnológica da Internet, incluindo a utilização do protocolo TCP/IP — entendido como um conjunto de protocolos de comunicação de dados —, os nomes de domínio, os servidores DNS e, por outro lado, o impacto da Internet na sociedade, geralmente descrito como questões de políticas públicas — onde se incluem temas como o controlo de conteúdos, o cibercrime e a propriedade intelectual —, são centrais e comuns entre as definições de “Governança da Internet”. Vejamos os seguintes exemplos:
“[“Governança da Internet”] refere-se, essencialmente, ao desenvolvimento partilhado de protocolos, acordos sobre normas e atribuições de nomes e endereços na Internet.”
Manuel Castells, The Internet Galaxy (2002), p. 29.
“O termo ‘Governança da Internet’, embora indefinido, bastante vago e parcialmente confuso, representa principalmente a gestão técnica global dos principais recursos da Internet: nomes de domínio, endereços IP, protocolos de Internet e o sistema de servidores DNS.”
Wolfgang Kleinwachter, Beyond ICANN vs. ITU: Will WSIS Open New Territory for Internet Governance (2004).
Finalmente, em 2005, a WSIS adotou uma definição de trabalho com um âmbito mais alargado:
“Governação da Internet” é “…o desenvolvimento e aplicação por parte de Governos, do setor privado e da sociedade civil, nas suas respetivas funções, de princípios, normas, regras, processos de decisão e programas partilhados, para dar forma à evolução e utilização da Internet.”[v]
Definição do Working Group on Internet Governance (WGIG) das Nações Unidas, constituído durante a primeira fase da Cimeira Mundial sobre a Sociedade da Informação, e n.º 35 da Agenda de Tunes da World Summit on the Information Society (WSIS), Tunes, 2005.
Este texto foi o objeto de um intenso debate durante o processo WSIS (vide nota 2) e não foi plenamente endossado por todas as partes ou intervenientes, daí ser tida como “definição de trabalho”.
Não obstante não ser questionada a abordagem multissetorial (multistakeholder) presente nesta definição, a frase “nas suas respetivas funções” foi-o porque para muitos participantes na Cimeira não ficou claro quais eram esses papéis ou como seriam acordados entre as diferentes partes. Porém, apesar destas reservas, a definição tornou-se amplamente utilizada.
No entanto o debate sobre os papéis e as responsabilidades das diferentes partes interessadas na “Governança da Internet” prossegue: evoluiu para a interpretação de “Cooperação Reforçada” (do Inglês “Enhanced Cooperation”), outro dos conceitos importantes discutidos durante a 2.ª ronda da WSIS, em 2005, em Tunes.
Imagem: © ISOC-OnlineCourses, 2020
Alguns atores deste processo entendem que a “Cooperação Reforçada” implicaria o estabelecimento de novos mecanismos de controlo ou mesmo de um organismo internacional adicional para tratar de questões de política da Internet. Outros opõem-se a esta perspetiva, argumentando que a “Cooperação Reforçada” pode acontecer — e está a acontecer — nas configurações atualmente existentes e entre os atores presentes no ecossistema da Internet.
Tal como a “Governança da Internet”, “Cooperação Reforçada” é um conceito em aberto que continua a ser debatido pelos participantes e interessados neste processo. Em 2013, o Presidente da Comissão das Nações Unidas sobre Ciência e Tecnologia para o Desenvolvimento (CSTD) — uma das comissões funcionais do Conselho Económico e Social —, Miguel Palomino de la Gala, anunciou a criação do Grupo de Trabalho sobre Cooperação Reforçada (WGEC). O propósito deste grupo de trabalho é examinar o mandato da Cimeira Mundial sobre a Sociedade da Informação (WSIS) das Nações Unidas relativamente à Cooperação Reforçada, tal como previsto na Agenda de Tunes, procurando, compilando e analisando as contribuições de todos os Estados-membros e de todas as demais partes interessadas e fazendo recomendações sobre como implementar plenamente esse mandato (Resolução A/RES/67/195, §20, da Assembleia Geral das Nações Unidas). Na sequência do trabalho do WGEC, o CSTD conduziu um estudo para o “mapeamento” das questões de “Governança da Internet”, essencial para o desenvolvimento do conceito.
Conclusão
Construída a partir de diferentes perspetivas, a Internet é a soma de muitas partes. Desde pelo menos a última década do século XX que se debate a sua “governança”, começando pelo esforço para encontrar um significado objetivo, internacionalmente aceite, para o próprio conceito — na senda, aliás, de similar exercício intelectual noutras áreas de “governação”.
Este esforço encontrou campo privilegiado de concretização na WSIS, em 2003 e em 2005, prosseguindo nos Fóruns anuais que se lhe seguiram, com destaque para o WSIS+10, em 2014, dando origem a uma dinâmica, ou “processo” próprio.
Na construção conceptual de “Governança da Internet” começou por se identificar as diferenças linguísticas e as diferenças de âmbito presentes no próprio conceito. A nível linguístico abundam nuances e sobrepõem-se vários significados. No respeitante ao âmbito, as interpretações variam, porém encontram denominadores comuns nas referências à infraestrutura tecnológica e às políticas públicas. Seja como for este percurso não se esgotou aqui e conseguiu alcançar uma abrangente “definição de trabalho”, objetiva, porém suficientemente dinâmica para abarcar uma muito necessária abordagem multissetorial (multistakeholder), que, por sua vez, evoluiu para a interpretação de “Cooperação Reforçada” onde os papéis e as responsabilidades dos diferentes atores se podem conjugar de forma construtiva.
A fragmentação da Internet prossegue como um dos principais desafios para a sua governança. Parafraseando o Secretário-Geral das Nações Unidas, António Guterres, na abertura oficial do XIV IGF, em Berlim, em finais do ano passado, não é inteiramente claro que vamos viver num mundo com uma só Internet. “A única maneira de o evitar é se conseguirmos ter uma só visão. Uma visão e um mundo.” Desta forma “esperamos conseguir ter uma só Internet.”
A Internet — essa tecnologia ao mesmo tempo tangível e intangível — enfrentou um teste crítico com a sobrecarga de utilização global causada pela pandemia de Covid-19. Os seus limites foram postos à prova e, enquanto infraestrutura tecnológica, resistiu ao desafio, assegurando o fluxo planetário de informação e mantendo ligados milhares de milhões de utilizadores.
Porém o seu “governo”, i.e., a “Governança da Internet”, precisará evoluir no quadro das atuais instituições para se adaptar à sobrecarga ainda mais intensa gerada pelo aumento de tráfego decorrente da digitalização das economias, em particular nos países desenvolvidos, permitida por tecnologias já disponíveis, ao mesmo tempo que deve garantir a universalidade do acesso — onde a oferta de serviço é um fator decisivo — e regular as tentativas para a controlar. Isto no pressuposto dos seus fundadores de garantir uma Internet livre.
Desta forma, assegurar a liberdade de acesso, por um lado, e de fluxo de informação, por outro, são os maiores desafios que Internet enfrenta no início da presente década.
O autor agradece todo o apoio prestado à realização do curso por parte do Capítulo em Portugal da Internet Society™ através do seu coordenador nacional, Professor Doutor José Legatheaux Martins. |
[iii] O termo governance passou a ter maior visibilidade nas relações internacionais através dos trabalhos da Commission on GlobalGovernance que produziu o relatório Our Global Neighbourhood (Oxford University Press, 1995). Esta Comissão foi criada em 1992 no quadro das Nações Unidas com o forte do apoio do então Secretário-Geral Boutros Boutros-Ghali. A Comissão produziu uma definição padrão de global governance onde se afirmava que “Governança é a soma das diversas formas pelas quais os indivíduos e as instituições, públicas e privadas, administram os seus assuntos comuns. É um processo contínuo pelo qual interesses conflitantes ou diversos podem ser acomodados e ações cooperativas podem ser tomadas. Inclui instituições formais e regimes habilitados para as fazer cumprir, bem como os arranjos informais com os quais as pessoas e as instituições concordaram ou percebem ser do seu interesse.” (Cap. I, p. 4, T. do a.). O relatório de 1995 foi simultaneamente atacado pelos movimentos soberanistas por apelar a reformas no sistema das Nações Unidas que poderiam aumentar a eficácia da organização e pelos movimentos federalistas de cariz internacionalista favoráveis a projetos bem mais ambiciosos. Os temas governance e global governance foram trazidos para Portugal e estudados pela primeira vez na Universidade nos cursos de relações internacionais graças ao trabalho pioneiro do Embaixador Fernando Reino (1929-2018). Da mesma forma, alguns anos depois, a Comissão Europeia debruçou-se sobre o tema e produziu a Comunicação sobre Governança e Desenvolvimento [COM(2003) 615], de outubro de 2003, onde começa por reconhecer que não existe “uma definição de governança internacionalmente acordada” (p. 3), e considera que ““Governança” significa a capacidade do Estado de servir os cidadãos” (Id.), entendendo que “diz respeito às regras, processos e comportamentos segundo os quais são articulados os interesses, geridos os recursos e exercido o poder na sociedade.” (Id.) A definição da Comissão acrescenta ainda que “o modo como são desempenhadas as funções públicas, geridos os recursos públicos e exercidos os poderes públicos regulamentares constituem os principais aspetos a ter em conta neste contexto.” (pp. 3-4)